Se você pensa que carro voador ainda é coisa de ficção científica e desenho animado futurista, é melhor pensar de novo. Estudiosos e fabricantes especializados no assunto já preveem que esse tipo de meio de transporte deve tomar os céus ainda nesta década.
A Europa, aliás, acaba de aprovar uma regulamentação específica para o funcionamento desses veículos aéreos, questão que já vem sendo discutida inclusive aqui no Brasil.
Em julho, a Eve Air Mobility — empresa subsidiária da Embraer, criada para desenvolver novos modelos de aeronaves de mobilidade aérea urbana — revelou no evento Farnborough Airshow, na Inglaterra, um mock-up apresentando pela primeira vez o design interno da cabine de seu veículo elétrico de pouso e decolagem vertical, o eVTOL.
Com a meta de trazer um veículo aéreo muito mais acessível às grandes cidades brasileiras, com passagens custando a partir de 99 reais, a Eve pretende iniciar sua operação oficialmente já em 2026 e ter pelo menos mil aeronaves voando pelo Brasil até 2035.
No momento, já são dois mil veículos encomendados, 150 deles para o uso no mercado de defesa e segurança (mas sem armamentos), numa parceria entre a Embraer e a britânica BAE Systems.
Na Embraer desde 2006, Flavia Ciaccia, hoje vice-presidente de Experiência do Usuário e Inteligência de Mercado da Eve, embarcou no projeto desde o primeiro momento, “quando éramos menos de seis pessoas na sala”, lembra.
“Um dos desafios mais relevantes é o da aceitação da comunidade”, diz Flavia. “Não adianta nada ter um veículo seguro e com preço acessível sem pessoas interessadas em voar ou comunidades dispostas a recebê-lo.”
Em entrevista ao Draft, Flavia Ciaccia fala sobre os desafios de mercado, design e tecnologia desse setor, e como vislumbra o futuro da mobilidade aérea no Brasil.
Você tem uma carreira de 14 anos na Embraer, antes de virar vice-presidente de Experiência do Usuário da Eve. Como essa trajetória ajudou a te qualificar para os desafios do cargo atual?
Estou na família Embraer desde 2006. Entrei no Programa de Especialização em Engenharia, que a Embraer tem até hoje, para recém-formados da área. São 18 meses de curso e, nesse tempo, passamos por várias aulas com especialistas da Embraer e professores do ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] para ter um aculturamento aeronáutico. A primeira fase é geral, depois somos divididos por carreiras.
No final, fui trabalhar na área de design e estúdio, com ergonomia de produto. Foi um casamento muito bacana da minha experiência na faculdade de engenharia mecatrônica com esse olhar humano do desenvolvimento centrado em pessoas.
Trabalhei com isso por alguns anos, até que fui convidada para participar de um projeto de pesquisa com outras universidades, quando comecei a trabalhar com desenvolvimento tecnológico e inovação.
Aí aprendi sobre experiência do usuário e a importância de conhecer o antes e o depois da jornada, não pensando só no voo, mas em tudo que influencia a viagem: a preparação, compra da passagem, o aeroporto, a chegada ao destino. Tudo isso influencia a percepção de conforto e satisfação
Também fizemos projetos com foco em acessibilidade, pessoas com deficiência ou mobilidade
reduzida, para entender como a gente poderia minimizar as dores e constrangimentos desse público. Isso abriu meu leque de possibilidades.
Durante os oito anos em que trabalhei na área, ganhei uma noção de como tratar a inovação dentro de uma empresa e atuar com diferentes stakeholders, universidades, institutos de pesquisa e empresas parceiras.
Orquestrar todos esses players foi muito importante para a minha carreira. Por puxar várias frentes relacionadas à inovação, experiência do usuário e desenvolvimento centrado nas pessoas – fui ficando conhecida por isso.
Quando esse modelo do eVTOL entrou no radar da companhia? Você participou desses bastidores desde o início?
Quando o projeto Sky – que era o nome antes de virar Eve – ia começar, fui chamada. Trabalhei num grupo muito seleto que deu início a esse projeto. Claro que teve um anteprojeto na inteligência de mercado da Embraer, antes de virar uma ideia mais concreta.
Quando se estabeleceu o foco, participei desde o kick-off [do projeto], éramos menos de seis pessoas na sala… Diziam que, um dia, a gente iria virar uma empresa separada da Embraer e construir tudo isso juntos… Cinco anos depois, fomos para a Bolsa de Nova York
Hoje, somos uma empresa listada e independente. Foi muito gratificante fazer parte de tudo isso.
Por que transformar a Eve em um spin-off, em vez de mantê-la como um braço da Embraer?
A Eve foi lançada como uma empresa nova e independente em outubro de 2020, dedicada a desenvolver o ecossistema de mobilidade aérea urbana, depois de ser incubada por quase quatro anos dentro da EmbraerX, a aceleradora de mercado da Embraer.
Nesse modelo, a empresa se beneficia de uma maior velocidade e agilidade, permitindo que a inovação e execução de projetos aconteçam num ritmo acelerado para aproveitar as oportunidades globais do mercado.
Em que grau as duas companhias permanecem conectadas?
A Embraer tem mais de 80% do capital da Eve, que conta com um suporte abrangente da Embraer, da engenharia à certificação, e sustentação e suporte de produtos numa base global.
A parceria estratégica das empresas é uma vantagem competitiva fundamental para o negócio, que inclui uma licença isenta de royalties para os mais de 50 anos de experiência de propriedade intelectual da Embraer e acesso a milhares de engenheiros qualificados
Esse alinhamento estratégico oferece importantes vantagens de custo e execução, pois a Eve busca a certificação e entrada em serviço de seu eVTOL, além de escalar sua solução para a mobilidade aérea urbana de forma global.
Qual a importância dos anúncios que a Eve fez no Farnborough Airshow?
O principal foi o nosso mock-up de interiores. Todo trabalho que a gente vem desenvolvendo ao longo dos últimos cinco anos é pautado em conversas com a comunidade, os potenciais usuários e operadores. Então, temos dado voz a todos os stakeholders para garantir que estamos entregando uma solução de valor.
Acreditamos num serviço mais acessível, sustentável e seguro. Se você olhar para nossas escolhas de materiais, de design interior, tudo ali tem motivo para existir. Não queríamos que o eVTOL parecesse um veículo para pessoas VIP, o que acontece hoje com os helicópteros
A gente não consegue ter a escala que espera com helicópteros porque o custo de operação [do helicóptero] é muito alto, além de ser um veículo muito ruidoso — algumas regiões não toleram esse tipo de operação —, e ainda tem a questão de segurança.
O interior do eVTOL traz o conceito de um veículo que é para todos. Usamos materiais sustentáveis, como cortiça para isolamento térmico e acústico e piso 98% feito de borracha reciclada. São elementos que traduzem nossa visão.
Fizemos um trabalho com os operadores para capturar o que funciona. Tem vários fatores, desde o deslocamento entre dois pontos da cidade, como do aeroporto ao centro, até voos de turismo.
No evento, também anunciamos a venda de 150 unidades de eVTOL para a Embraer no uso em sistemas de vigilância e defesa – algo que a empresa deve explorar, mas sem armamentos. Nosso veículo não é o mais adequado para isso, e nem é nosso interesse.
O que significa na prática um design centrado no ser humano?
Quando a gente fala nisso, não estamos pensando só no usuário final, mas em todo o ecossistema que existe em torno desse novo veículo: operadores, controladores de tráfego aéreo e funcionários, as partes que vão possibilitar que essa jornada não tenha atritos. Todas as camadas de backstage têm que estar muito bem alinhadas.
Valorizamos bastante a acessibilidade, então pensamos em soluções que facilitem a entrada e saída de pessoas. Na configuração do mock-up, fica uma pessoa de frente para a outra – isso permite que a entrada da cabine seja maior, facilitando o acesso daqueles com dificuldade de mobilidade. O assento tem uma pequena plataforma que ajuda no embarque e desembarque.
Temos essa mentalidade de teste, prototipação e cocriação não só no veículo, mas em outros elementos. No final de 2021, fizemos o Rio Experience. Foi uma simulação, um grande protótipo de operação. Como nossos veículos ainda não podem voar oficialmente, usamos um helicóptero. Foi uma ação envolvendo 14 empresas, desde [setor de] energia até infraestrutura, simulando uma rota da Barra da Tijuca ao Aeroporto do Galeão.
Essa rota não existia antes, então tivemos que desenvolver todo um trabalho com a Anac para entender como fazer a operação partindo do aeroporto. Os eVTOLs são elétricos, então não dá para ficar esperando para pousar, porque a bateria tem um tempo limitado
Todos esses estudos, de como sincronizar aviação comercial com eVTOL, desenvolvemos em simulações. Então, quando a gente fala em desenvolvimento centrado no ser humano, pensa em todos os elementos que vão compor o quebra-cabeça da mobilidade urbana.
Como esse veículo vai ser mais acessível?
Trabalhamos com uma passagem num valor até seis vezes mais baixo do que a de helicópteros. Só assim vamos conseguir que isso escale de forma que faça sentido. A eletrificação traz um benefício muito grande para os novos veículos, algo diferente do helicóptero, que tem aquela grande hélice em cima.
O eVTOL tem motores distribuídos, com cada modelo explorando uma distribuição diferente. Isso traz mais segurança porque, se um motor falha, tem outros para compensar. Por ser elétrico, também é mais eficiente, e sai mais barato. O eVTOL gera até 68% menos emissões que o carro, e 90% menos que um helicóptero
Quando fizemos a simulação no Rio de Janeiro, praticamos valores a partir de 99 reais, muito similares a uma corrida de Uber. A longo prazo, é isso que queremos atingir para sermos competitivos.
Qual impacto positivo o eVTOL deve trazer para o futuro da mobilidade urbana?
Se pensarmos na população que quer se deslocar dentro da cidade, o veículo é uma opção mais rápida e que atinge regiões difíceis de chegar. Não estamos falando em substituir o trânsito do solo, não é isso. Se você está atrasado para uma consulta ou precisa chegar cedo para o aniversário do seu filho, são ocasiões em que vai ter outra opção.
Pretendemos começar a operar em 2026. Na nossa visão, em 2035 devemos ter mil eVTOLs voando em cinco cidades do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Curitiba
É muito pouco: uma montadora fabrica mil carros por dia… Por outro lado, [mil eVTOLs em operação] representa 16 milhões de pessoas voando por ano. Traz uma possibilidade a mais para pessoas que querem se deslocar de forma diferente – seja por diversão ou por querer chegar mais rápido.
Outro lado é abrir novas frentes de trabalho, possibilitar que pessoas tenham acesso a educação e oportunidades usando o veículo. As pessoas [hoje] podem não ter acesso a um emprego melhor porque ficam o dia inteiro no trânsito… Se puderem se deslocar com um preço acessível e de forma rápida, podem ir a um médico melhor, fazer um curso, ter acesso a mais empregos.
Comunidades que vão receber esse serviço também vão ter um crescimento, uma circulação maior de pessoas e mais possibilidades de desenvolvimento.
Como vocês enxergam o futuro do mercado de carros voadores? Devemos ver esses veículos atendendo a outras demandas e funções?
É um mercado até bastante aquecido. São mais de 200 projetos no mundo. Claro que dá para contar em uma mão as empresas que vão trazer uma possibilidade real para as populações de várias cidades. Também vemos um investimento muito alto nessas empresas, em fornecedores e infraestrutura.
Particularmente, acho positivo ter outros players, porque isso nos ajuda a ter força e construir regulamentações em conjunto. Se a gente não conversar e se unir para criar padrões, vamos ter dificuldade com a parte de carregamento das baterias, por exemplo
Vejo que várias cidades do mundo estão se preparando para isso, e órgãos de homologação trabalham em normas para atender essa demanda. Claro que queremos nos posicionar como líderes nesse segmento, mas vemos outros players importantes nessa jornada.
O que vocês esperam desse primeiro momento de lançamento, em 2026?
Estamos vendo com nossos operadores em quais regiões eles têm interesse, ajudando a criar rotas e malhas. Temos buscado entender para onde as pessoas estão se deslocando, pensando em qual a melhor configuração para o início de operação. Cliente a cliente, para garantir que estamos criando a infraestrutura necessária para que ele consiga operar.
Não é só entregar o veículo. Precisa ter um local para pousar, que o grid de energia chegue até ali, [precisa] de mão de obra qualificada. Tudo deve estar preparado para o início de operações. É nisso que a gente tem trabalhado nas simulações. Para realmente montar o cenário para que nossos operadores comecem a operação
Hoje, temos mais de duas mil intenções de compra de unidades do eVTOL. São alguns anos de backlog de veículos para entregar.
Na Europa, a operação de carros voadores já vem sendo regulamentada. Em que ponto estamos aqui no Brasil?
No início do ano, demos entrada no processo de certificação do nosso veículo junto ao órgão de homologação. Optamos pela Anac porque ela tem órgãos bilaterais tanto nos EUA quanto na Ásia e na Europa. Isso facilita.
É esperado que haja diferenças entre as certificações, mas temos a intenção de trabalhar para alcançar todas elas via Anac. Pretendemos estabelecer até o final do ano a base de certificação sobre a qual trabalhar.
Desenvolver um veículo criado num contexto de mobilidade urbana para um uso como o de defesa é um grande desafio?
Não é do nosso escopo, por isso fizemos a venda para a Embraer e a BAE, que juntas vão desenvolver isso. Nosso foco é o uso civil.
Temos trabalhado hoje com o transporte de passageiros como principal foco, mas vemos sim outras possibilidades, como transporte de carga e serviços médicos – mas tudo para uso civil
Conversamos até com alguns hospitais e empresas para entender as necessidades e requisitos, e saber quais são os casos que fazem sentido para o veículo.
Quais os principais desafios para a Eve nos próximos anos?
São vários, afinal estamos criando um serviço e um ecossistema completamente novos. A regulamentação, como falamos, ainda está sendo escrita e desenvolvida, e deve levar um tempo.
Em questão de tecnologia, tem o desafio de serem veículos elétricos, então tem toda a questão de bateria e carregamento… E há o desafio de como operacionalizar o desenvolvimento dessas duas mil unidades. Estamos até desenvolvendo um trabalho junto com a Porsche Consulting para criar nossa estratégia industrial.
Um dos desafios mais relevantes é o da aceitação. Não adianta ter um veículo seguro e com preço acessível sem pessoas interessadas em voar ou comunidades dispostas a recebê-lo. A aviação está aí há mais de 100 anos e ainda tem gente com medo de voar. Conforme as pessoas entenderem os benefícios, isso pode ser contornado
Precisamos atuar mais próximos das comunidades para criar essa cultura e educar sobre como estamos desenvolvendo esse trabalho, com cuidado e uma segurança gigantesca. Queremos que as pessoas se sintam confortáveis e seguras em voar com o eVTOL.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário será submetido ao Administrador. Não serão publicados comentários ofensivos ou que visem desabonar a imagem das empresas (críticas destrutivas).