Chats para partilhar fotos e vídeos do inimigo, aplicações que alertam para ataques aéreos e redes sociais para transmitir a guerra online. Na Ucrânia, os smartphones servem para combater a Rússia.
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*Observador, por Ana Cristina Marques - 16/04/2022
A guerra na Ucrânia também se faz de smartphone na mão. Com o início da invasão russa, a 24 de fevereiro, as aplicações móveis transformaram-se em armas. De um momento para o outro, tornaram-se meios através dos quais civis ucranianos podiam identificar a localização das tropas inimigas, encontrar rotas seguras para sair do país invadido ou partilhar a guerra online.
Tymish, de 35 anos, estava em Kiev nos primeiros dias da guerra. Teve oportunidade de retirar a família da capital ucraniana, mas voltou à cidade onde nasceu “por uma questão de princípio”. Ao Observador, o gestor de comunicação de uma organização internacional — prefere não dizer qual — diz que foram identificadas, desde logo, duas funcionalidades dos smartphones em contexto de guerra, uma negativa, outra positiva. Por um lado, o inimigo analisava e monitorizava os conteúdos inicialmente publicados nas redes sociais, informações que estavam a “ferir” a defesa do país. Por outro lado, as forças ucranianas perceberam o potencial da tecnologia e incitaram a população a participar. “Lançaram um conjunto de canais no Telegram, um deles criado pelas Forças Armadas e outro pelos Serviços de Segurança, e anunciaram a todos: ‘Se virem um tanque russo ou militares russos, tirem fotografias em segurança e enviem para estes canais'”, conta.
A estratégia, diz Tymish, “provou ser muito eficiente”, com a população a “enviar muita informação em tempo real” tendo em conta o movimento de forças inimigas. “Qualquer pessoa podia avisar da localização e mandar fotos como prova”, continua, referindo-se aos canais criados para este propósito. Tymish não chegou a usá-los porque “felizmente” não se cruzou com tropas inimigas, mas conhece quem tenha feito do Telegram um recurso militar. A plataforma digital de troca de mensagens encriptadas tem sido a principal fonte de informação segura numa altura em que o país de Zelensky está sob ataque. Curiosamente, o serviço foi criado pelo russo Pavel Durov, um crítico de Putin que em 2016 era apelidado pela Forbes como “o Mark Zuckerberg da Rússia”.
Já antes, o Financial Times destacou como a tentativa russa de tomar a capital ucraniana falhou devido a um conjunto de fatores, incluindo questões geográficas e erros dos invasores. Mas talvez o motivo mais surpreendente tenham sido os smartphones usados pela primeira vez na história militar como armas poderosas. A história de Dmytro Lysovyy é um reflexo disso: no segundo dia da invasão estava em casa dos pais em Hostomel, a noroeste da capital, quando amigos mais velhos, sem smartphone, ligaram dando conta do avistamento de tropas russas; Lysovyy abriu o chat no Telegram criado pelos Serviços de Segurança e inseriu a localização dos inimigos — 30 minutos depois, chegou a resposta dos militares ucranianos. A mesma testemunha conta ao Financial Times como, percebendo o que tinha acontecido, as tropas russas foram de casa em casa à procura de smartphones.
"Lançaram um conjunto de canais no Telegram, um deles foi criado pelas Forças Armadas e outro pelos Serviços de Segurança e anunciaram a todos 'Se virem um tanque russo ou militares russos, tirem fotografias em segurança e enviem para estes canais'." - Tymish, 35 anos, em Kiev.
Aplicações como Telegram e Diia foram essenciais nos primeiros dias da guerra. Diia foi criada pelo governo ucraniano em 2020 e modificada para acomodar as necessidades da guerra. Inclui agora listas de empregos remotos para ucranianos desempregados ou aulas de matemática para crianças afastadas das escolas, mas permite também que civis partilhem a localização de militares russos ou dicas sobre “pessoas suspeitas”, segundo o The Washington Post.
Mstylav Banik, diretor no Ministério da Transformação Digital que criou a Diia, explicou ao Financial Times como os relatos das posições inimigas eram comuns antes de as forças russas destruírem as torres de comunicação — representaram até “um papel muito importante” na defesa de Kiev, bem como uma “nova realidade da guerra”. Pessoas retidas em território ocupado usavam os chats com a mesma função e, para garantir que as informações eram confiáveis, equipes específicas filtravam os relatórios antes de estes serem passados aos militares ucranianos.
Os constantes bombardeamentos russos viraram os ucranianos para a tecnologia — a aplicação Air Alarm, que alerta sobre ataques aéreos próximos, chegou a ser o app com mais downloads na Ucrânia nas primeiras semanas do conflito, de acordo com a Quartz. O app Air Alert foi criado num só dia após o início da guerra por uma das maiores empresas de tencologia da Ucrânia. Também o app Starlink, um serviço de banda larga operado pela SpaceX de Elon Musk, tornou-se bastante popular.
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“A nova realidade dos conflitos modernos” e a transformação da sociedade civil
Se os civis ucranianos tiverem, de fato, a possibilidade de fornecer informações úteis à defesa do país, seja através de imagens ou seja do rastreamento de localizações inimigas, então, podemos estar perante “uma nova realidade dos conflitos modernos” com poder para “influenciar” o cenário de guerra, diz ao Observador o coronel João Barbas. O assessor de estudos do Instituto da Defesa Nacional destaca uma diferença assinável no presente conflito face aos anteriores: o acesso à informação em tempo real e não manipulada. A dificuldade, especula, é saber “como lidar com o volume de informação”. Tanto as aplicações de chat como as redes sociais “serão um bom auxiliar para quem está se dendendo”.
A ideia de existirem civis a partilhar a localização de tropas inimigas também transforma o papel daqueles que “sempre foram o alvo” e quem mais “sofre com os conflitos”. Provavelmente, atira o coronel, “esta é uma nova forma que a sociedade civil tem de contribuir para a defesa do seu país”. E acrescenta: “Entramos numa guerra de informação diferente daquela que esperávamos.”
Em princípio, a informação será extremamente útil e poderá ser usada por ambos os lados, continua, referindo também como a análise das redes sociais poderá se provar útil tendo em conta eventuais crimes de guerra. “No final desta guerra, provavelmente teremos mais informação sobre o que aconteceu. Mesmo na Geórgia, em 2008, não tivemos tanta informação. Agora, é do domínio público e em escala global.” A situação atualmente vivida na Ucrânia “provavelmente fará escola para o futuro”.
Sem descurar o cuidado acrescido que é necessário para lidar com a desinformação num cenário de guerra, o professor universitário João Rucha Pereira lembra que, logo no princípio do conflito, houve um apelo do Presidente ucraniano para que os cidadãos utilizassem o máximo de tecnologia possível no sentido de dar informações sobre aquilo que estaria se passando nos diferentes locais de residência.
“A guerra na Ucrânia é uma estreia no que diz respeito aos smartphones”, diz Rucha Pereira. Não que acredite que isso possa alterar o resultado final do conflito — mas, ainda assim, “tem influência, vai pelo menos obrigar as tropas invasoras a corrigirem determinadas estratégias de avanço ou recuo”, especula o consultor internacional de segurança e membro do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (é ainda consultor na NATO desde 2015). “A tecnologia não vai ser usada só por um lado, mas pelos dois.”
O general russo que fez um telefonema e acabou morto
Há evidências que sugerem que as redes móveis estão a ser usadas como um instrumento de guerra no atual conflito, com ambos os lados da barricada a rastrear os telefones dos soldados. De acordo com a Sky News, isso acontecerá através de simuladores que são colocados no interior de drones e de caminhões que são posteriormente enviados para os campos de batalha e cuja função é imitar antenas de maneira a captar os sinais dos telefones mais próximos. É também possível que alguns sistemas consigam identificar diretamente a localização dos telefones quando os simuladores se conectam aos mesmos através do GPS interno dos aparelhos.
Na Ucrânia, acrescenta o meio já citado, os russos estão a usar um sistema de guerra que pode captar mais de 2.000 telefones num raio de sensivelmente seis quilômetros; acredita-se que as forças ucranianas estejam a usar uma tecnologia semelhante.
Em meados de março, o The New York Times avançava, citando dois oficiais norte-americanos, que as tropas ucranianas tinham interceptado uma chamada feita por um general russo, acabando por matá-lo. O general não foi identificado e não foi providenciada a localização do ataque, no entanto, a notícia parecia corroborar a ideia de que os militares russos estariam a usar comunicações pouco seguras, capazes de serem descobertas pela Ucrânia.
“Para localizar as tropas russas na Ucrânia serão usadas as redes de telecomunicações no caso de os russos utilizarem os seus celulares. Num ambiente destes, quero imaginar que as forças armadas ucranianas tiram partido disso”, diz Luís Correia, professor de telecomunicações no Instituto Superior Técnico. As “telecomunicações são sempre um elemento fundamental numa guerra”, garante, explicando ainda que as forças armadas de ambos os países têm os seus meios de comunicação. Para Luís Correia, não há dúvidas: “Obviamente que as torres de telecomunicações são um alvo apetecível”.
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No final de março, o Wall Street Journal escrevia — citando dados públicos, executivos de empresas de telecomunicações e analistas do setor — que os serviços de telecomunicações ucranianos mostravam resiliência após um mês de invasão, com o acesso consistente à internet contribuindo para a defesa ucraniana e os serviços wireless permitindo que civis continuassem a fornecer informação aos militares sobre as posições das tropas invasoras e divulgando imagens dos ataques nas redes sociais. “É um dos fatores que provavelmente pode explicar o sucesso da resistência ucraniana”, chegou a dizer numa conferência de imprensa Victor Zhora, vice-presidente do Serviço Estatal de Comunicações Especiais e Proteção de Informações ucraniano.
Anos de conflito serviram de aviso para o setor das telecomunicações — foram adicionadas linhas de fibra ótica de backup e desenvolvidos planos de contingência. Também em março, a maior operadora do país, Kyivstar, confirmava a chegada do serviço de wi-fi a mais de 200 abrigos antiaéreos.
"As operadoras móveis ucranianas também lançaram o roaming nacional na Ucrânia. Isso significa que os assinantes podem mudar para a rede de outras operadoras se não for possível usar o sinal da sua operadora móvel", afirmou a operadora de telecomunicações Lifecell ao Observador.
Já a rival Lifecell assegurava ao Wall Street Journal que as suas equipes passaram cerca de dois meses antes da guerra movimentando alguns equipamentos para o oeste do país — para onde milhões entretanto se deslocaram —, de maneira fortalecer a cobertura sem fios. A 13 de abril, a operadora dizia estar restaurando as comunicações móveis nas zonas da região de Kiev, onde antes “era impossível fornecer cobertura devido às hostilidades” — na vila de Vorzel as comunicações foram restabelecidas através de um satélite da SpaceX. Dias antes, anunciava a ativação de duas estações base em Bucha, que possibilitariam a operação de todas as tecnologias, 2G/3G/4G, com recurso a equipamentos da Starlink de Elon Musk.
Ao Observador, o departamento de comunicação da Lifecell assegura que tem procurado “evitar um apagão completo das comunicações” em locais onde o combate permanece ativo, bem como providenciar rede em áreas muito concorridas, para onde os refugiados são deslocados — atualmente, aproximadamente 9% da rede Lifecell está em baixo por causa da guerra.
Numa nota enviada por e-mail, a empresa ucraniana garante ainda que os diferentes operadores interromperam “a concorrência e a rivalidade comercial”, estando agora em regime de cooperação: “As operadoras móveis ucranianas também lançaram o roaming nacional na Ucrânia. Isso significa que os assinantes podem mudar para a rede de outras operadoras se não for possível usar o sinal da sua operadora móvel”.
“Esta é a primeira guerra que estamos a ver online e onde, de fato, os celulares têm um papel fundamental. Sabemos que existem outras guerras, na Síria e noutros lados, onde as redes de comunicação móveis não estão tão desenvolvidas e as pessoas, tendo celulares, não terão aquilo a que hoje chamamos de smartphones. Aparentemente, é a primeira vez que há guerra num país e que as pessoas têm estes meios de comunicação. Isso está fazendo toda a diferença”, diz ainda Luís Correia.
O certo é que nas horas seguintes à chuva de mísseis russos que caiu sobre Kiev, em 24 de fevereiro, o presidente ucraniano saía à rua de smartphone na mão — com a barba por fazer e, já usando o habitual casaco verde tropa, garantia que, contrariamente aos relatos de que tentara fugir, permaneceria na capital.