*Centro de Pesquisa em Direito e Segurança, por Fabrício Rebelo - 18/01/2022
O acompanhamento do cenário de segurança pública de qualquer país, para que possa ser tomado com seriedade e critério científico, precisa ser assentado em indicadores objetivos. Convencionalmente, se utiliza como parâmetro básico os atos vinculados à violência intencionalmente letal, por se tratar do tipo de crime com menores chances de subnotificação. Há diversos desses indicadores disponíveis para pesquisa, alguns adotando a variação de números absolutos, outros as oscilações percentuais e, outros ainda, as taxas por determinado universo populacional.
Todos os indicadores, desde que mantido seu referencial comparativo, são instrumentos válidos de análise, sobretudo no acompanhamento evolutivo de cenários, mas alguns deles fornecem informações de cunho mais amplo e global, especialmente quanto à possibilidade cotejo entre realidades extraídas de locais distintos.
Internacionalmente, ainda que os números absolutos sejam rotineiramente computados, o indicador referencial preponderante é a taxa de homicídios, que se convencionou calcular para cada grupo de 100 mil habitantes. É algo que, além da já enfatizada possibilidade de se comparar cenários de locais diferentes, reduz substancialmente – se não por completo – a interferência de suas variações populacionais. Afinal, ainda que seja obviamente natural que um país com 200 milhões de habitantes registre mais homicídios do que um com 20 milhões, as taxas por grupos de 100 mil dos indivíduos que ali estão fornecem a mesma razão comparativa, sendo elementos hábeis a identificar qual deles é proporcionalmente mais violento.
No Brasil, o acompanhamento das taxas de homicídio foi o principal balizador da segurança pública até o início dos anos 2000. Era por elas que se mensurava o quão grave se encontrava a situação de insegurança no país, inclusive em confrontação com os parâmetros da ONU, para a qual se considera violência epidêmica uma taxa de homicídios superior a 10 por 100 mil.
A partir de 2003, no entanto, a ênfase foi sendo sutilmente deslocada e a taxa de homicídios cedeu espaço aos números absolutos, cuja abordagem passou a ser muito mais comum ao se analisar se os homicídios estavam aumentando ou diminuindo. Em boa parte, isso se deveu ao advento da Lei nº 10.826, de dezembro de 2003, o popularmente designado “Estatuto do Desarmamento”, tendo em vista que, no afã de apontar seus supostos efeitos positivos, se buscou enfatizar reduções lineares no total de assassinatos - mesmo nos que a lei não teria qualquer efeito –, em detrimento das ínfimas oscilações nas taxas, cujo impacto popular se revelava inegavelmente menor, dada a sua igualmente diminuta razão de grandeza.
No entanto, mesmo que afetem em menor escala a compreensão popular, não é possível se omitir na evidenciação de que, no último biênio com dados disponíveis, estabeleceu-se a maior redução histórica na taxa de homicídios, com seu retorno a patamares de 26 anos atrás.
Foi exatamente isso que revelaram os dados para os anos de 2019 (finalizados) e 2020 (preliminares), de acordo com os registros no DATASUS (banco de dados oficial do Ministério da Saúde), a partir dos quais se constata que, após ter alcançado 30,7 / 100 mil em 2017 (maior já registrada), a taxa de homicídios brasileira começou a ser reduzida já em 2018, quando foi consolidada em patamar 12,64% menor em relação ao ano anterior, equivalente a 26,8 / 100 mil. No ano seguinte (2019), a redução foi substancialmente maior, com o indicador caindo 21,87%, a maior redução de toda a série histórica, fazendo-o retornar a 20,9 por 100 mil, patamar repetido em 2020. Desde 1993, com 20,2 / 100 mil, a taxa de homicídios não era tão baixa no Brasil.
Curiosamente, no entanto, essa redução não ganhou qualquer destaque na grande mídia ou nas ONGs que se dedicam ao acompanhamento da segurança pública nacional, nem mesmo naquelas que produzem atlas e anuários de segurança pública. Talvez isso se explique pela contingência de que as maiores reduções em homicídios no país se operaram no mesmo intervalo de tempo em que mais se vendeu armas de fogo para seus cidadãos, o que culmina por apresentar mais um sólido argumento contra a narrativa causal entre armas e crimes que há muitos anos impera na maior parte da imprensa tradicional e nas citadas entidades.
Ainda assim, mesmo sem destaque, o fato continua sendo extremamente relevante. Tal como no número absoluto de homicídios e no percentual da participação das armas de fogo em sua prática, o primordial indicador brasileiro de segurança pública também nos revela que, nos últimos anos, voltamos a repetir registros alcançados pela última vez na década de 1990. Insolitamente, justamente na época em que a segurança pública brasileira ainda não havia apostado no combate à circulação legal de armas como sua primordial diretriz. Talvez – e apenas talvez – não seja mera coincidência.
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