*LRCA Defense Consulting - 20/07/2025
Uma possível decisão do governo brasileiro de revisar, e potencialmente encerrar, acordos e contratos militares em curso com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, conforme noticiado com exclusividade pelo portal DefesaNet em 18 de julho de 2025, acende um alerta de proporções inéditas.
Essa medida, motivada por um cenário de atritos diplomáticos e comerciais entre o presidente brasileiro e o presidente americano, levanta questões cruciais sobre a soberania tecnológica e a capacidade operacional das Forças Armadas do Brasil. Com mais de um bilhão de dólares em contratos via Foreign Military Sales (FMS), a guinada estratégica impõe uma reavaliação profunda das dependências militares e abre um caminho complexo, mas vital, em direção à autonomia.
O legado de uma parceria e suas vulnerabilidades
A cooperação militar de fato entre Brasil e Estados Unidos, consolidada ao longo de mais de sete décadas, enraizou-se nas estruturas operacionais das Forças Armadas Brasileiras. Agora, essa interdependência expõe vulnerabilidades críticas que serão abordadas no âmbito de cada uma das Forças Armadas.
Exército Brasileiro: o ponto de ruptura na sustentabilidade
O Exército Brasileiro (EB) mantém em operação diversos sistemas dependentes de fornecimento e know-how norte-americanos. Entre os mais sensíveis, destacam-se:
• 30 unidades do obuseiro autopropulsado M109A5+ BR, entre os 56 adquiridos dos estoques do Exército dos EUA, foram modernizados com assistência técnica americana.
• 584 veículos blindados M113, cruciais para logística e infantaria mecanizada. Destes, um programa de modernização com a BAE Systems foi implementado, visando atualizar 386 unidades para o padrão M113BR.
• Frota de helicópteros UH-60L Black Hawk, em operação no Comando de Aviação do Exército.
• Adicionalmente, a dependência se estende a 222 mísseis Javelin e 33 unidades de lançamento, em um negócio estimado em US$ 74 milhões, com entregas previstas a partir de 2025.
A interrupção no acesso a peças, manuais, atualizações e treinamentos afetaria diretamente a sustentabilidade desses sistemas e reduziria a capacidade de interoperar com aliados que adotam doutrinas baseadas em padrões OTAN. O projeto Guarani 2.0, que visa dotar os blindados VBTP-MR de uma arquitetura digital de comando e controle, também corre riscos por depender de componentes de criptografia e comunicação de origem americana. A perda de acesso a tecnologias críticas compromete diretamente a capacidade de comando e de consciência situacional no campo de batalha moderno.
Um caso ilustrativo é o da Venezuela, que, após embargos americanos na década de 2010, enfrentou dificuldades para manter sua frota de F-16, resultando em uma taxa de prontidão inferior a 20%, segundo relatórios do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). Essa realidade serve como um alerta sobre os potenciais impactos em campo.
Marinha do Brasil: navegando em águas turbulentas
A Marinha do Brasil, embora menos exposta que a Força Aérea, também pode sofrer impactos significativos.
• A frota de Helicópteros SH-60 Seahawk, fundamentais para guerra antissubmarino, possue manutenção complexa dependente dos EUA.
• Sistemas de armas de fragatas classe Niterói e algumas embarcações da Esquadra ainda operam com sensores e subsistemas de origem americana. A dependência pode se estender a componentes para as fragatas Tamandaré e até mesmo ao Programa de Submarinos Nucleares (ProSub) que, mesmo liderado pela França, pode ser afetado por restrições em tecnologias dual-use, como sensores e comunicações.
• Projetos de vigilância naval com UAVs e sistemas C4ISR, em fase de planejamento, contavam com possível integração de tecnologia dual americana.
Com a crescente importância do Atlântico Sul e da Amazônia Azul na estratégia marítima brasileira, qualquer redução na prontidão operacional de meios navais representa um risco significativo para o País, haja vista que, sem acesso a peças e a códigos de software embarcado, o ciclo de vida operacional de alguns sistemas pode ser abruptamente encurtado.
Força Aérea Brasileira (FAB): o calcanhar de aquiles do Gripen, mas não só dele
A Força Aérea Brasileira (FAB) é, segundo a maioria dos analistas, a mais exposta à perda de acesso às tecnologias dos EUA.
Embora o caça F-39 Gripen seja um projeto sueco-brasileiro, cerca de 25% de seus componentes são de origem americana, incluindo sistemas de navegação e guerra eletrônica, bombas guiadas e armamentos inteligentes (como JDAMs), e interfaces de comunicação seguras compatíveis com os padrões NATO. O motor General Electric F414, de fabricação americana, é um ponto crítico para a frota de 36 caças, adquiridos por US$ 5,4 bilhões.
Além disso, o E-99M, aeronave de alerta aéreo antecipado fundamental para o controle do espaço aéreo amazônico e da costa atlântica, possui radar Erieye de fabricação sueca, mas com integração de módulos críticos americanos.
O mesmo se aplica ao KC-390 Millennium, orgulho da indústria nacional. Apesar de projetado no Brasil, o avião incorpora motores, aviônicos e sistemas de missão desenvolvidos nos EUA. Eventuais embargos podem afetar não só a operação interna, mas também a capacidade de exportação do modelo, atingindo a imagem do Brasil como parceiro de confiança no mercado global de defesa.
Consequências estratégicas
A perda de interoperabilidade, a dependência logística interrompida e a ameaça à continuidade de programas estratégicos apontam para desafios graves e consideráveis. A suspensão de contratos pode alterar significativamente as estratégias de Defesa do Brasil. No curto e até no médio prazo, a redução da prontidão operacional de equipamentos-chave comprometeria a capacidade de resposta a muitas das ameaças em terra, mar e ar.
A exclusão de exercícios conjuntos com os EUA, como UNITAS e CRUZEX, limitaria a interoperabilidade com aliados da OTAN, reduzindo a eficácia em operações multinacionais. Além disso, a interrupção de acordos de transferência de tecnologia pode retardar ou até inviabilizar projetos de modernização nas três Forças.
Um caminho para a autonomia
Contudo, como uma moeda sempre tem dois lados, a crise também revela oportunidades latentes para inovação e modernização, mesmo que o pior cenário não se configure.
• Diversificação de parcerias estratégicas
A necessidade que seria imposta pela crise apontaria para a busca de novos parceiros com políticas de exportação menos restritivas, como Suécia, França, Israel, Turquia, Índia e Coreia do Sul. Especialistas já sugeriam que o Brasil reduzisse o peso dos EUA no setor de defesa e aumentasse as parcerias com outras potências que podem preencher lacunas deixadas pelos EUA. A "guinada radical" em direção a novos e diversificados parceiros, bem como a busca por projetos "livres das restrições americanas ITAR e alemãs BAFA", são indicativos claros dessa nova opção.
• Reforço da Base Industrial de Defesa (BID)
A BID é hoje responsável por aproximadamente 3,58% a 4% do PIB nacional e 2,9 milhões de empregos diretos e indiretos, segundo dados do MDIC. A crise pode ser o catalisador para um maior investimento e fomento à indústria nacional. Exemplos como o míssil antinavio MANSUP, produzido pela SIATT em parceria com o grupo EDGE (Emirados Árabes), mostram a capacidade brasileira. Embraer Defesa & Segurança e Avibras (caso se recupere) têm potencial para liderar projetos de sistemas de comando e controle e armamentos.
• Adoção de arquitetura aberta e nacionalização progressiva
O foco deve ser em sistemas críticos, sobretudo em áreas como cibernética, sensores e comunicações, sem prejuízo de outros setores importantes, como aeronaves, embarcações, mísseis, armamento leve e pesado e veículos de combate.
Entre soberania e vulnerabilidade: a importância da Base Industrial de Defesa
Uma possível decisão, do Brasil ou dos Estados Unidos, de interromper os contratos existentes na área de Defesa entre ambos, refletiria uma grave e perigosa inflexão estratégica em um momento de tensões globais crescentes. A suspensão comprometeria gravemente a prontidão operacional do Exército, da Marinha e da Força Aérea no curto e no médio prazo.
O cenário, embora desafiador, forçaria o Brasil a acelerar sua busca por uma defesa mais soberana e resiliente. Isso passa necessariamente pela diversificação inteligente de parcerias, pelo investimento massivo e estratégico na Base Industrial de Defesa e pelo desenvolvimento de tecnologias nacionais que garantam a capacidade operacional a longo prazo. A transição será complexa e custosa, mas é um imperativo estratégico para assegurar a autonomia e a segurança nacional em um mundo cada vez mais multipolar.
O desafio é claro: equilibrar a necessidade de capacidades imediatas com investimentos de longo prazo em autonomia tecnológica. A conjuntura atual exige uma abordagem proativa, que combine parcerias internacionais estratégicas com o desenvolvimento de soluções nacionais, garantindo a soberania e a resiliência das Forças Armadas Brasileiras em um cenário global volátil.
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